Ministros da 1ª Turma definiram que processo sobre penalidade deve ser arquivado se ficar três anos sem movimentação
Decisão inédita do Superior Tribunal de Justiça (STJ), proferida pela 1ª Turma, pode abrir porta para a anulação de uma série de multas aduaneiras que foram aplicadas pela Receita Federal a empresas de comércio exterior. Os ministros trataram sobre o prazo dos processos que discutem essas cobranças na esfera administrativa.
Ficou definido que, nesses casos, aplica-se a chamada “prescrição intercorrente”. Significa que os processos não podem ficar parados na delegacia de julgamento da Receita Federal (DRJ) ou no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) por tempo indeterminado.
Se passar três anos sem qualquer movimentação, o processo tem de ser arquivado e a penalidade anulada.
Esse entendimento muda a forma como as coisas acontecem atualmente. A DRJ e o Carf entendem que não se aplica prescrição intercorrente ao processo administrativo fiscal. Essa questão é objeto, inclusive, de súmula no Conselho – a de nº 11.
Sendo assim, pode demorar o tempo que for e o processo continua ativo. A regra vale para qualquer cobrança aplicada pela Receita Federal que esteja sendo discutida administrativamente.
O que o STJ está dizendo agora, no entanto, é que somente cobranças tributárias estão sujeitas a essa regra e nem todas as multas aduaneiras têm natureza tributária.
A chance de os pedidos não serem procedentes no Judiciário é mínima a partir de agora”
Multas aplicadas para controle da fiscalização – que não têm relação direta com pagamento de tributo – devem ser consideradas administrativas e sendo matéria dessa natureza existe prescrição intercorrente, conforme prevê a Lei nº 9.873, de 1999.
“As operações de comércio exterior estão sujeitas ao controle das autoridades não apenas em relação aos tributos que incidem na importação e na exportação, mas também em relação à regular entrada, saída, movimentação e armazenagem de bens, bagagens e remessas postais”, afirma João Cláudio Leal, do escritório SGMP Advogados.
No caso analisado pela 1ª Turma, a Societé Air France, empresa de transporte aéreo, foi multada por registrar, fora do prazo, o embarque de mercadorias para o exterior. A obrigação está prevista na Instrução Normativa nº 28, de 1994.
As cobranças foram validadas em processos administrativos e a empresa recorreu, então, à Justiça. Defendeu se tratar de questão aduaneira – não tributária – e, nesse caso, deveria ter sido aplicada a prescrição intercorrente porque se passaram mais de três anos entre a apresentação de sua defesa administrativa e a decisão da autoridade competente.
Venceu em primeira e segunda instâncias e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) recorreu ao STJ. O julgamento foi realizado, na 1ª Turma, no mês de maio (REsp 1999532).
O argumento do Fisco aos ministros foi que o dever de prestar informações às autoridades aduaneiras auxilia a fiscalização e a arrecadação do imposto de exportação. Por esse motivo, então, as multas por descumprimento dessa obrigação teriam natureza tributária.
Relatora do caso na 1ª Turma, a ministra Regina Helena Costa destaca em seu voto, no entanto, que o recolhimento do imposto ocorre em momento anterior ao da obrigação dos transportadores de registrar a mercadoria que está sendo enviada para fora do país no Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex).
Não haveria, nesse caso, portanto, relação direta com o tributo. “Ainda que as informações a serem apresentadas pela empresa transportadora possa auxiliar, reflexamente, a fiscalização do imposto de exportação, somente se empresta caris tributária às obrigações que repercutem de maneira direta na fiscalização e na arrecadação das exigências fiscais”, diz.
O entendimento foi acompanhado por todos os demais ministros que participaram do julgamento.
A decisão da 1ª Turma é importante por ser a primeira do STJ sobre o tema. Não tem efeito vinculante, mas pode ser usada como precedente para a primeira e a segunda instâncias do Judiciário – o que favorece os contribuintes.
Advogados ouvidos pelo Valor dizem que é muito comum os processos ficarem parados, à espera de julgamento, por mais de três anos. Citam entre cinco e oito anos de demora na esfera administrativa.
Por isso, há previsão de que uma série de multas aduaneiras que foram aplicadas pela Receita Federal e estão nesse “limbo” possa ser anulada na Justiça.
“A chance de os pedidos dos contribuintes não serem procedentes no Judiciário é mínima a partir de agora. O entendimento, ainda que de turma, faz referência à tese fixada sob o rito dos recursos repetitivos”, diz Paulo Ricardo Stipsky.
Ele se refere ao tema 328, julgado pela 1ª Seção do STJ no ano de 2010. Os ministros firmaram orientação a ser seguida por todo o Judiciário no sentido de existir prescrição intercorrente para a conclusão de processo administrativo instaurado para se apurar infrações administrativas.
Para Stipsky, o ideal seria que o próprio Carf revisasse a aplicação da Súmula 11 para as questões aduaneiras. “Evitaria que a DRJ, o Carf e o Judiciário ficassem sobrecarregados com essa matéria.”
Esse tema foi motivo de enorme desentendimento no Carf em 2021. A 1ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção tinha em mesa um caso sobre multa aduaneira. Três conselheiros, representantes de contribuintes, votaram por não aplicar a Súmula 11 por entender que a norma só abrangia questões tributárias – não administrativas.
O presidente da turma na época, representante do Fisco, não gostou do que ouviu e ameaçou fazer uma representação contra os conselheiros que votassem por não aplicar a súmula.
Houve reação instantânea. Conselheiros de contribuintes se sentiram coagidos e entidades ligadas à advocacia tributária emitiram nota repudiando a conduta do presidente – que renunciou ao cargo.
“O caso analisado no STJ é rigorosamente idêntico ao que esteve em julgamento no Carf em 2021 e o STJ está dizendo agora que se aplica, sim, a prescrição intercorrente”, compara o advogado Giuseppe Pecorari Melotti.
Para isso, no entanto, acrescenta, o passo primordial é conferir a natureza da multa aplicada no contexto da operação de comércio exterior. “Se puramente fiscal, não se aplica a prescrição intercorrente, mas se relacionada ao controle aduaneiro, aplica-se”, diz.
A advogada Maria Andréia dos Santos, complementa que a decisão do STJ deve impactar a atuação das autoridades aduaneiras. “Os cenários atuais, marcados por elevadíssima demora na análise desses processos, deverá ser substituído por uma maior celeridade. Essa decisão é, sem dúvida, um marco.”
Por Joice Bacelo
Fonte: Valor Econômico